Simon Schwartzman (1984)
"A Teoria, na prática, é outra"
"A Teoria, na prática, é outra"
Em poucas áreas esta expressão popular é tão verdadeira quanto em relação às universidades. Qual é, ou tem sido, esta teoria? Qual é a prática? Como se relacionam uma com a outra? É este o objeto desta apresentação.
1.Teoria e prática
Todas as organizações humanas possuem justificativas de sua própria existência, que aparecem em documentos oficiais e são reafirmadas por seus lideres e participantes em ocasiões solenes. São estas justificativas que chamamos aqui de "teoria"; poderíamos falar também de ideologia, racionalização, justificação (não é isto, evidentemente, o que se entende por teoria nas ciências sociais).
Quando as organizações são relativamente simples, e têm por objetivo desempenhar uma função bem determinada, a teoria tem muitas chances de se ajustar a prática. Quando não, as duas podem se distanciar bastante. As instituições educacionais, e as universidades em particular, são sistemas sociais bastante complexos e diferenciados; quando falamos de " universidade brasileira" estamos nos referindo a todo um sistema de educação superior que é, naturalmente, mais diferenciado e complexo ainda do que cada uma de suas universidades. Neste caso, conhecer a teoria não ajuda muito a conhecer o que acontece realmente no dia a dia destas instituições.
É por isto que muitas pessoas preferem deixar de lado estas teorias, ou racionalizações, e examinar diretamente o que ocorre no ambiente universitário - os números de alunos que entram e saem, a qualidade dos cursos, o tipo de formação proporcionada, o emprego dos formados, etc. No entanto, o exame das teorias tem grande importância, porque elas se cristalizam nas legislações e organogramas, influenciam o comportamento das pessoas e levam a resultados freqüentemente inesperados .
É importante, por isto, conhecer as teorias da universidade brasileira, confrontá-las com a realidade, e ver se deste confronto uma teoria mais adequada pode ir se desenvolvendo. O exame destas teorias mostra, de uma maneira geral, que elas são sempre o resultado de confrontos de objetivos e valores. Descobrir este confronto, muitas vezes oculto por baixo dos discursos oficiais, ajuda muito a entender porque a teoria e a prática às vezes se distanciam tanto.
2. O passado colonial.
As primeiras universidades brasileiras, como todos sabem, datam dos anos 30; no entanto, as primeiras escolas superiores do Brasil foram criadas por D. João VI, a partir de 1808. O Brasil, ao contrário das colônias Ibéricas, não teve a presença de universidades no período colonial. No entanto, não há dúvida de que somos herdeiros da experiência universitária portuguesa, ou mais especialmente de sua Universidade de Coimbra.
Muito brevemente, pode-se dizer que a teoria da Universidade de Coimbra até a reforma pombalina era a da Universidade Católica da Contra-Reforma. Ela tinha por função formar os teólogos, sacerdotes, juristas e administradores do Império Português dentro da orientação estrita da Ordem dos Jesuítas, e era uma expressão da profunda aliança que havia entre a Igreja e o Estado naquele pais.
Na prática, a universidade de Coimbra sofreu diretamente as repercussões dos conflitos entre o Estado e a Igreja em Portugal, que culminaram, na segunda metade do Século XVIII com a expulsão dos jesuítas e a reforma pombalina da Universidade. Na época da reforma pombalina a universidade tradicional já se encontrava, em toda a Europa, sob o forte ataque dos ventos do iluminismo e da revolução francesa. Estes ventos traziam duas novidades importantes, que nem sempre vinham juntas. Uma foi o esforço de trazer para dentro das universidades as ciências modernas, destinadas a substituir o conhecimento clássico. A outra foi a de introduzir conhecimentos técnicos no âmbito universitário, particularmente nas áreas de medicina e engenharia.
3. O século XIX.
O que recebemos quase imediatamente, com a vinda da família real portuguesa foi uma tentativa de implantar a segunda destas inovações, tentada com a Reforma Pombalina, e sob forte influência francesa. Era uma teoria essencialmente utilitarista de universidade, preocupada com seus resultados práticos, principalmente nas áreas da engenharia, da administração e das artes marciais. A Escola Politécnica do Rio de Janeiro corporifica esta tendência.
Esta orientação pragmática e moderna se juntava a uma outra, que era a da universidade como instituição selecionadora e sancionadora de posições de prestígio e autoridade social. Seu melhor exemplo no Brasil são as Escolas de Direito de São Paulo e Recife. O bacharel formado por estas escolas não adquiria nenhum conhecimento técnico específico, mas aprendia como lidar com a burocracia do Estado e dela participar, e estabelecia os contatos pessoais indispensáveis para sua carreira.
Por muitos anos, a teoria da universidade brasileira foi, basicamente, a pombalina - uma universidade técnica, prática, formando profissionais competentes para a administração do Estado. Na prática, o que prevaleceu foi a função de formação de elites. As escolas de engenharia, e particularmente a do Rio de Janeiro, foram o berço de uma concepção aparentemente racionalista (hoje diríamos tecnocrática) que atribuía ao Engenheiro, e não ao advogado ou jurista, a competência (e, conseqüentemente, o direito ) às posições sociais de maior prestígio e autoridade. Em geral, nem uns nem outros (e nem o terceiro grupo importante de profissionais de nível superior, os médicos) obtinham de fato conhecimentos técnicos que os capacitassem de forma especial para o exercício do poder e da autoridade. O que havia era um simples disputa de posições de prestigio e poder entre setores das elites, cada qual exibindo os títulos que possuíam.
4. O período republicano.
A República não traz consigo uma nova teoria da universidade brasileira. As antigas escolas superiores continuam a funcionar, outras são criadas, e algumas mostram sinais de melhora de qualidade, como as de engenharia e medicina de São Paulo, a primeira por sua associação com as ferrovias do Estado, a segunda graças ao apoio recebido desde cedo da Fundação Rockefeller. É nas décadas de 20 e 30 que a questão universitária adquire intensidade, com pelo menos três teorias universitárias em conflito. A primeira (não por ordem cronológica) é a da Universidade como centro de formação científica e cultural e criação de elites. Sua principal manifestação é a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, seguida da experiência frustrada da Universidade do Distrito Federal. Em muitos sentidos, a experiência da USP é bem sucedida, e deixaria marcas importantes na implantação de muitas das principais tradições de trabalho científico no Brasil. Ao mesmo tempo, no entanto, ela não consegue influenciar as escolas profissionais mais antigas, e tem dificuldades em atrair para si estudantes, perdendo em competição e prestígio com as carreiras superiores tradicionais. A Faculdade de Filosofia também foi sempre, dentro da definição da legislação de Francisco Campos de 1931, uma escola de formação de professores secundários, uma ambigüidade de funções e objetivos que sempre a perseguiu. A segunda teoria era a da universidade confessional e católica. O ativismo católico que caracterizava a atuação da Igreja no Brasil naqueles anos tinha na educação uma de suas preocupações centrais, e a idéia de construir uma universidade católica e confessional estava sempre presente. Com o pacto entre a Igreja e o Estado estabelecido em 1934, esta universidade confessional deveria ser a própria Universidade do Brasil, que serviria de padrão e modelo para as demais. Isto seria conseguido pela cuidadosa seleção de seus professores, tanto no Brasil quanto no exterior, segundo critérios de alinhamento com o pensamento conservador católico, e pela fixação, por lei, do conteúdo dos currículos dos cursos a serem ministrados.
O projeto de uma universidade católica oficial fracassou pelas mesmas razões que tornam difíceis a simbiose da Igreja como Estado, sempre que ela é tentada. Por um lado, a instituição universitária, fica sujeita a todo tipo de interferências políticas e institucionais, que acabam comprometendo a pureza ideológica de seu projeto. Por outro, os alunos que buscam as universidades têm objetivos próprios, de mobilidade social e aquisição de conhecimentos e capacitação profissional, e não aceitam com facilidade as doutrinações ideológicas de seus professores. Este desencontro entre a Universidade Católica e seus estudantes se repetiria mais tarde quando a Igreja, finalmente, desiste de sua associação com o Estado e parte para a criação de suas próprias universidades independentes.
A terceira teoria, finalmente, era a da Universidade padrão, que definiria um modelo único a ser replicado pelo país afora. Se no início este projeto se confundia com o da Igreja, ele tinha claramente uma dinâmica própria. Na versão original, de 1939, haveria no país uma Universidade principal, a do Brasil, que deveria servir de modelo para as demais. Com o tempo, a Universidade do Brasil voltou a ser do Rio de Janeiro, ou seja, uma entre tantas, o padrão passou a ser estabelecido em abstrato, na legislação, e controlado por um colegiado, o Conselho Federal de Educação. Segundo esta teoria, a Universidade faria parte de um sistema nacional completo e exaustivo de educação e organização corporativa do trabalho e das profissões. Na prática, este esforço resultou na criação de um sistema universitário ritualizado, burocratizado, homogêneo na aparência, mas de conteúdo altamente variado e freqüentemente desconhecido pelos próprios funcionários responsáveis pelo seu controle e supervisão.
5. Os anos do pós-guerra.
Na metade do século XX o sistema universitário brasileiro era uma combinação mais ou menos aleatória das três teorias dos anos trinta e das teorias anteriores. Na Faculdade de Filosofia da USP, e em alguns pontos isolados de outras universidades, haviam uns poucos que mantinham os ideais de uma universidade centrada na pesquisa e no conhecimento científico e tecnológico. Universidades católicas eram estabelecidas nas principais capitais do país. O Ministério da Educação, apesar da mudança do regime político, havia aprendido toda uma sistemática controladora e formalista de trabalho que não conseguiria mais desaprender. Nenhuma destas teorias, no entanto, mostravam o vigor conceitual e ideológico que haviam tido nos anos anteriores. Os anos do após-guerra são anos de desenvolvimento econômico relativamente fácil, e prevalecia a idéia de que a universidade tinha como função básica a formação de profissionais que deveriam levar à frente a tarefa de modernização do país. Pela primeira vez a educação universitária começa a ser uma aspiração de grandes setores da classe média, o que leva à expansão progressiva de todo o sistema de educação superior, seja público, seja privado. O governo federal assume a responsabilidade por grande parte do ensino superior, e chama a si as universidades estaduais criadas nos anos anteriores, exceto a de São Paulo. A pesquisa hiberna, as preocupações doutrinárias e religiosas ficam em segundo plano, o país se expande, e a educação parece ser a grande via de progresso aberta para todos.
6. O período pós 68.
Os primeiros anos do regime militar instalado em 1964 são de confrontação entre o sistema universitário, até recentemente embalado em suas aspirações de crescimento constante e influência política cada vez maior de seus professores e alunos, e o regime fechado e autoritário que se instala. A partir de 1968 o governo, sem renunciar à sua atitude repressiva no plano político, começa uma política de expansão acelerada do sistema de ensino superior, seja através da abertura de mais vagas no sistema público, seja, principalmente, pela liberdade dada para a criação de instituições superiores de ensino privado.
Duas teorias presidem esta política, e coexistiriam nos anos seguintes. A primeira foi a teoria do capital humano. Ela dizia, essencialmente, que a educação era um investimento racional e altamente produtivo, não só para os indivíduos, como para a sociedade como um todo. Tanto as pessoas sabiam disto que se esforçavam ao máximo para entrar nas universidades. Não haveria outra coisa a fazer senão expandir ao máximo a educação em todos os níveis, deixando se possível que a própria lei da oferta e da procura funcionasse na criação de novos cursos, e tudo se ajustaria ao final.
As conseqüências práticas a curto prazo desta política foram a expansão do sistema de ensino superior, o aumento do peso relativo do ensino privado em relação ao público e a perda progressiva da qualidade média do aprendizado. A mais longo prazo, o resultado foi a criação de uma massa de pessoas educadas e sem empregos correspondentes à titulação adquirida, e a transformação do professorado universitário do setor publico em uma corporação de funcionários altamente organizados e militantes.
A segunda teoria foi a da indissolubilidade do ensino-pesquisa-extensão. Enquanto que a primeira se referia ao papel geral da educação sobre a sociedade, a segunda se aplicava ao próprio funcionamento interno das instituições universitárias. Sua origem foi o exemplo das universidades mais avançadas dos Estados Unidos e, em menor grau, da Europa, que levavam à cabo o modelo ideal da universidade científica e de pesquisa. Combinada com a tendência burocratizadora e centralizadora do Ministério da Educação, tratou-se de aplicar esta teoria simultaneamente a todas universidades do país, o que levou na prática muitas delas ao caos organizacional e institucional, à proliferação de programas de pós-graduação, e à hipervalorização formal das credenciais acadêmicas nos processos de seleção e promoção de professores. Enquanto a extensão ficava, na maioria das vezes, na intenção, a definição da "pesquisa" e da "pós graduação" como os principais critérios de avaliação do mérito e distribuição de recursos levou à proliferação da falsa pesquisa e de teses de qualidade duvidosa, que dificilmente eram detectadas pelos mecanismos de controle e acompanhamento que foram sendo criados pelo Ministério da Educação e outras agências de financiamento.
É certo, também, que a nova teoria da universidade-pesquisa favoreceu aquelas que tinham condições para adotar este perfil, e constituir programas de pesquisa e pós-graduação que até então não encontravam apoio suficiente para subsistir.
Por trás da nova teoria se escondia, no fundo, a antiga teoria da universidade única, herança dos anos do Estado Novo. Aceitar que as universidades e outros estabelecimentos de ensino superior pudessem ter destinos, orientações e vocações diferentes seria aceitar o princípio da desigualdade. Em nome de uma igualdade idealizada, no entanto, o que se obtinha eram desigualdades de fato, e a total impossibilidade de tratar de maneira diferenciada coisas tão distintas. Estas desigualdades não deixariam de surgir, no entanto, quando a escassez de recursos e a preocupação com os resultados do trabalho universitário levou a uma preocupação crescente com a qualidade do que era feito. A conseqüência foi o surgimento, no interior do sistema universitário, de um movimento que, em nome de princípios de democracia e eqüidade, tratou de colocar em dúvida a própria legitimidade do sistema do mérito para a condução das questões educacionais e de pesquisa. Era uma nova teoria que surgia, a da universidade igualitária, democrática e participativa. Sua prática, aparentemente, consiste basicamente na defesa dos interesses corporativos de seus professores menos qualificados, e uma oposição sistemática à elevação dos padrões acadêmicos de trabalho.
7. Crise e transição.
A combinação entre as teorias do capital humano, da indissolubilidade ensino-pesquisa e da universidade igualitária e participativa levou, ao final do governo Figueiredo, a uma crise profunda do sistema universitário brasileiro. Esta crise, em parte, se deve às dificuldades orçamentárias que atingiram o sistema universitário, reduzindo drasticamente os salários reais dos professores e os recursos para o funcionamento rotineiro das universidades. A crise não se limita, no entanto, a estes aspectos financeiros. O mercado de trabalho, saturado, não tem emprego para a massa de profissionais liberais que a universidade vem titulando de acordo com suas aspirações. A qualidade do ensino, em média, tem caído assustadoramente, e faltam padrões de acompanhamento e avaliação do que é feito. As universidades públicas funcionam, em geral, com níveis baixíssimos de eficiência gerencial e administrativa. O ensino privado não consegue mais se sustentar, e pressiona o setor público por subsídios. A greve dos professores das universidades federais de 1984 foi talvez o indicador mais marcante da crise, ao se prolongar indefinidamente sem provocar maiores reações ou preocupações em quase nenhum setor significativo da sociedade. Era como que, se a universidade deixasse de existir, não faria maior diferença, uma situação muito preocupante e que de fato tem levado muitos setores universitários a se indagarem a respeito da situação a que chegaram.
A conseqüência tem sido uma discussão bastante salutar que hoje percorre todo o setor universitário, em busca de soluções e alternativas. Várias teorias, algumas novas, a maioria antigas, são apresentadas como solução para a crise. São teorias que se apresentam, freqüentemente, em pares contrapostos. Vejamos dois destes pares, e algumas de suas possíveis práticas.
a. A injeção maciça de recursos e a implantação em todo o país da universidade pública e de mesmo padrão. Segundo esta teoria, o problema da universidade brasileira é que não se levou às últimas conseqüências o projeto de implantação da universidade pública brasileira. Havendo vontade política, todo o sistema de educação superior poderia e deveria ser estatizado, os salários dos professores deveriam ser aumentados, e todos os alunos deveriam ter educação gratuita.
Existem algumas dificuldades óbvias com esta proposta. Basicamente, ela exigiria uma definição política sobre o tamanho que o sistema universitário brasileiro deveria ter, adequado às possibilidades reais de formação de nível superior de nossos professores e á capacidade de absorção dos formados pelo mercado de trabalho. Esta capacidade de absorção, por sua vez, é elástica e depende de variáveis políticas e institucionais. Para dar um exemplo, a capacidade de absorção de farmacêuticos depende de que se mantenha uma legislação obsoleta que exige a contratação de destes profissionais em todas as farmácias do país. Se a política a ser adotada for restritiva, ela levaria possivelmente a uma universidade muito mais seletiva e meritocrática do que a que temos atualmente. Se a política for distributiva, ela poderá levar a que se privilegie de maneira abusiva um grupo social determinado - os universitários e seus professores - sem que isto redunde necessariamente em maiores benefícios para a sociedade. Uma política distributiva levaria, ainda, a consolidar a atuais situações de poder e prestígio das instituições de ensino superior, e o aumento imprevisível da burocracia ministerial.
A teoria alternativa a esta seria a da total privatização do ensino superior, que passaria a ser regulado pelas leis da oferta e da procura do mercado. Na prática, esta teoria poderia levar a que a universidade abandonasse uma série de funções próprias e continuas de que necessita e que não pode depender de flutuações do mercado. O trabalho cultural e científico ficaria prejudicado; a discriminação classista na seleção de alunos para as universidades se acentuaria. Como se sabe, nenhum país do mundo possui hoje um sistema universitário deste tipo. As universidades privadas americanas, por exemplo, são sustentadas por mecanismos filantrópicos e apoios governamentais na forma de contratos, subsídios, etc., que na prática as tornam freqüentemente indistinguíveis das públicas, que tampouco são gratuitas.
b. Desenvolvimento da pesquisa universitária aplicada e voltada para a realidade do país. Esta teoria surge como contraposição à idéia de que a pesquisa universitária tem sido basicamente acadêmica, voltada para questões e modelos de trabalho importados, representando com isto um custo injustificável e uma exigência inútil sobre os programas de ensino e pós-graduação. Este problema seria solucionado se a universidade se voltasse para a realidade à sua volta, aos problemas do país. Assim, seu trabalho seria mais significativo, despertaria mais interesse, a universidade seria mais útil, e receberia mais apoio.
Na prática, esta teoria se baseia em um suposto equivocado. A verdade é que o pesquisador brasileiro, em sua grande maioria, já é preocupado com a realidade do seu país, e tem interesse em realizar trabalhos social e economicamente relevantes. Também é verdade que existem áreas e setores universitários com uma orientação muito mais acadêmica, de participação no movimento científico internacional contemporâneo, mas é uma fração menor. As dificuldades com a possível utilização prática dos resultados da pesquisa universitária não estão, na maioria das vezes, em seu interior, mas na ausência de um ambiente externo que solicite e absorva sua contribuição. Existem inúmeras experiências que demonstram que, quando existe interesse fora da universidade e competência dentro dela, esta orientação para a prática se dá sem maiores dificuldades. A preocupação exclusiva com " a realidade" e " a prática", no entanto, quando a competência é duvidosa e o ambiente externo pouco receptivo pode significar simplesmente uma tentativa de reduzir a legitimidade dos setores universitários mais qualificados, preocupados em fazer prevalecer os critérios de mérito e qualidade do trabalho.
A teoria da pesquisa prática e aplicada é formulada muitas vezes em termos de colocar a universidade "a serviço" do país. As polarizações que surgem em relação a esta teoria são complicadas, porque podem trazer conteúdos ideológicos paradoxais. Trata-se de uma concepção que surge freqüentemente fora do sistema universitário, e se volta contra a idéia de que a universidade deva ser autônoma e gerir seus próprios destinos, e por isto tem conotações bastante autoritárias. Ao mesmo tempo, ela é freqüentemente defendida no interior do sistema universitário, em tErmos de maiores exigências de participação e compromisso social .
Em contraposição às teorias de orientação prática e "serviço" surgem as teorias da autonomia universitária, em suas diversas versões. As diversas versões têm em comum a idéia de que a universidade deve ser auto-gerida, e receber da sociedade os recursos que julga necessários para funcionar. Por um lado, no entanto, existem aqueles que tratam de fundar a autonomia na competência técnica, científica e profissional do sistema universitário, enquanto que outros a vêm muito mais como uma corporação de professores, alunos e funcionários regidos por processos de democracia direta. Em ambos os casos, o perigo é a desvinculação progressiva da universidade em relação à sociedade que a apóia, e que pode não querer mais fazê-lo.
8. Algumas propostas.
Uma nova teoria sobre a universidade brasileira deveria, tanto quanto possível, levar em consideração a prática havida até hoje, e não partir de princípios abstratos e modelos idealizados do que a "Universidade", como ente idealizado, deveria fazer.
O primeiro elemento de uma nova teoria deveria ser, portanto, deixar de falar em "universidade" como um todo, e considerar o sistema de ensino superior brasileiro em toda a sua diferenciação e complexidade. A conseqüência seria admitir como legítimo o fato de que este sistema e diferenciado, plural, e devera continuar como tal. Ele deverá continuar a ter um setor público, subsidiado, e um setor privado. Ele continuará a desempenhar funções distintas, de ensino, pesquisa, pós-graduação, serviços comunitários, educação geral. Estas funções continuarão a se distribuir de maneira desigual, com diferentes estabelecimentos se especializando em algumas delas conforme suas vocações.
Aceitar esta concepção diferenciada significa necessariamente deixar de aceitar o dogma da indissolubilidade ensino-pesquisa. Isto não significa tirar a pesquisa da universidade. Significa, isto sim, aceitar que esta relação seja variável, e que o ensino enquanto tal também seja valorizado.
Mais profundamente, um novo modelo deverá desmontar, progressivamente, os vínculos cartoriais entre o ensino superior, as organizações profissionais e o mercado de trabalho. Será necessário reconhecer que existe pouca relação entre o que a universidade ensina e o que o mercado de trabalho demanda, e que o atual sistema só serve para manter a rigidez dos programas de ensino, além de alguns poucos privilégios profissionais. As organizações profissionais devem passar a assumir o controle de qualidade de seus associados, e não depender mais de diplomas outorgados pelas universidades e garantidos por lei. Deve haver liberdade de associação profissional - quem não gostar do atual Conselho de sua classe, que forme outro. Devem cessar as obrigatoriedades de contratação de determinados profissionais para determinadas funções. O papel dos Conselhos deve ser o de certificar a competência de seus filiados, e informar ao público.
A desmontagem do atual sistema corporativo permitirá que se abra espaço, no ensino superior, para a formação de tipo geral, no uso das linguas, nas ciências e nas humanidades, que é o que grande parte das pessoas buscam nas universidades, e o que o mercado de trabalho realmente quer. Com a desregulamentação das profissões poderão surgir uma grande variedade de experimentos de treinamento e formação profissional, que o mercado de trabalho eventualmente selecionará.
Em um cenário como este, o Ministério da Educação deverá ter seu papel profundamente reformado. Ele deverá deixar de procurar controlar a vida universitária em seus detalhes, e desenvolver sua capacidade de acompanhar o desempenho do sistema como um todo. Ele deverá melhorar seus serviços estatísticos, ser capaz de distinguir o bom do incompetente, e estimular iniciativas pioneiras e experimentais. Ele deve, acima de tudo, desenvolver mecanismos de distribuição de recursos que tome em conta o desempenho das instituições de ensino, e deixe o detalhe dos gastos para cada unidade.
É possível que, na nova prática que se estabeleça a partir desta teoria, o diploma universitário não valha tanto quanto valia no passado. Mas trata-se de um passado que dificilmente voltará. Em contrapartida, poderá haver uma revalorização do mérito, da competência, da iniciativa, e, assim, do sistema universitário como um todo.
Rio de Janeiro, novembro de 1984.
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